Entenda os dados de violência de gênero no estado de São Paulo ao longo de 10 anos
O comportamento das denúncias ao longo de uma década colocam em dúvida se os crimes aumentaram ou se as mulheres se sentem mais seguras para denunciar
Por Nathalia Tetzner e Talita Cardoso
A violência de gênero é uma dor que muitas carregam de forma silenciosa. Em uma sociedade patriarcal, diversas mulheres têm seus corpos e psicológicos constantemente violados. Ela nem sempre deixa marcas físicas, mas o emocional nunca é o mesmo.
Um país em que as mulheres têm constante medo de sair na rua sozinhas um pouco mais tarde do que o de costume, pois uma delas é morta a cada 6 horas. Um país em que 62% das vítimas de feminicídio são negras. Um Brasil em que mulheres não têm pleno direito sobre seus corpos, pois a cultura do estupro as trata como mero objeto de prazer sexual.
Campanhas, leis, serviços públicos e ONGs. O que a sociedade está fazendo para proteger nossas mulheres?
25 de novembro é o dia escolhido para conscientizar sobre a não-violência contra a mulher. Apesar da data, esta é uma luta que nunca para e o combate precisa ser constante. Levando isto em consideração, é essencial compreender a misoginia escancarada em dados que flutuam ao longo da última década.
Através de dados da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo (SSP), é possível fazer um levantamento e análise das denúncias apontadas entre 2013 e agosto de 2023, compreendendo como esses números se comportaram ao longo dessa década. Com eles, é possível entender como a sociedade evoluiu - ou não - em relação ao machismo e a violência contra a mulher.
.png)
(Foto: Freepik)
Quais são as principais leis de proteção à mulher?
Você deve conhecer a Lei Maria da Penha. Ela configura-se como a lei de proteção a mulher mais antiga do Brasil, tendo sido sancionada no ano de 2006. A Lei de número 11.340 carrega esse nome em homenagem a Maria da Penha, que passou a se dedicar a combater a violência de gênero após seu então marido tentar matá-la duas vezes.
A Lei Maria da Penha tem mecanismos com o intuito de impedir que crimes de violência familiar e doméstica aconteçam. Além disso, promove medidas de proteção e assistência àquelas mulheres que foram vítimas do crime.
Entretanto, apesar de ser a primeira e a mais conhecida, a Lei Maria da Penha não é a única na legislação brasileira com o intuito de promover a proteção das mulheres. Também existem:
-
Lei Carolina Dieckmann: Sancionada em 2012, a lei 12.737 aborda o ambiente digital e define como crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obter dados pessoais. Ela foi criada dois anos após a atriz Carolina Dieckmann ter seu computador hackeado e fotos íntimas divulgadas;
-
Lei do Minuto Seguinte: Oferece suporte imediato a vítimas de violências sexuais, como apoio psicológico, social e médico, exames preventivos, atendimento pelo SUS e ajuda jurídica. Ela é a lei de número 12.845 e foi sancionada em 2013;
-
Lei Joana Maranhão: Joana Maranhão é uma nadadora que em 2008, aos 21 anos, contou que foi abusada sexualmente pelo seu ex-treinador. Dessa forma, a lei 12.650 sancionada em 2015 aumentou o prazo para denúncia de violência sexual, garantindo que as vítimas possam buscar seus direitos até 20 anos após o crime;
-
Lei do Feminicídio: A mais recente e também muito famosa. Ela foi sancionada em 2015 e engloba assassinatos com violência doméstica e familiar ou que degradem a vítima como mulher. A lei 13.104 torna o feminicídio um crime hediondo, com penas mais altas que podem variar de 12 a 30 anos.
As leis que protegem as mulheres são criadas como uma forma de acabar com violências que acontecem apenas pela questão de gênero, considerando que a sociedade é patriarcal e as mulheres são subjugadas.
Já Katia Chambo Gonçalves, da ONG Nova Mulher acredita que a lei é eficaz, mas ainda vê dificuldades em quem as aplica e na estrutura social. “Confiamos na lei, mas as dificuldades ainda estão nos operadores de direito por causa do machismo estrutural que ainda nos rodeia”.

Maria da Penha, Carolina Dieckmann e Joanna Maranhão nomeiam as principais leis de proteção à mulher (Fotos: Jarbas Oliveira / @loracarola no Instagram / Saulo Cruz)
Como funcionam os serviços de apoio à mulher vítima de violência
Além das leis, diversos serviços públicos no Brasil foram criados para auxiliar a mulher vítima de violência. Desde delegacias especializadas a serviços de proteção, com o intuito de acolher e auxiliar as mulheres que as procuram, são eles:
-
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM): Apesar de qualquer delegacia estar disposta a receber denúncias de violência de gênero, as DEAM são mais capacitadas para recolher esses tipos de notificação, prevenindo, investigando e protegendo as vítimas;
-
Casa da Mulher Brasileira: Atendimento de saúde, jurídico, social e econômico para mulheres;
-
Centro de Referência às Mulheres Vítimas de Violência: Também realiza um acompanhamento multidisciplinar de acolhimento – social, jurídico, pedagógico e psicológico – para vítimas de violência de gênero;
-
Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: Juizados responsáveis pelo processo, julgamento e execução da pena de crimes de violência doméstica ou familiar por conta de gênero;
-
Serviço de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual (SAMVVIS): Realizam prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, exame de corpo de delito, prevenção de gravidez indesejada, interrupção da gravidez em casos previstos por lei e acompanhamento psicológico para mulheres vítimas de abuso sexual;
-
Núcleos de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência: Nas Defensorias Públicas oferecem defesa de direitos individuais e coletivos das mulheres de forma gratuita e em graus judicial e extrajudicial. Já os Ministérios Públicos solicitam medidas protetivas, fiscalizam estabelecimentos - públicos e privados - de atendimento às mulheres vítimas, além de mover ações públicas.
Além dos serviços públicos, existem também as iniciativas privadas de proteção e acolhimento a mulheres através das Organizações Sem Fins Lucrativos (ONGs). Elas fazem parte do terceiro setor e, em sua maioria, sobrevivem de doações e campanhas realizadas ao longo do ano para arrecadar fundos.
Para Carla Jara da Associação Fala Mulher, mesmo com tantos serviços públicos em prol da proteção à vítima, ainda existem alguns desafios que precisam ser superados para que a eficácia dessas políticas seja maior. “Acreditamos que melhorias contínuas são possíveis com o engajamento de todos os setores da sociedade”, opina.
Conheça algumas ONGs
Conscientizar para proteger: as campanhas contra violência de gênero
Diversas campanhas foram veiculadas nos mais variados veículos ao longo dos anos. Algumas mais pontuais, mas outras marcantes. Além disso, as datas de conscientização e movimentos criados nas redes sociais também representam um papel importante na luta contra violência de gênero.
A campanha Agosto Lilás, por exemplo, acontece no mês em que a Lei Maria da Penha foi sancionada e incentiva a proteção à mulher e a denúncia de casos de agressão. As ações são marcadas por divulgar medidas que podem ser tomadas em caso de violência de gênero. Além disso, o Congresso Nacional é simbolicamente iluminado na cor roxa.

Anualmente, o prédio público reflete a luz roxa da campanha (Foto: Agência Senado)
Ainda em relação a datas, o dia 25 de novembro é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra Mulher, escolhido em homenagem às irmãs Mirabal (Pátria, Minerva e Maria Teresa), mortas na República Dominicana pela ditadura de Leônidas Trujillo.
As mulheres tinham diploma universitário, eram ativistas políticas e se tornaram um símbolo da luta feminina mundialmente, principalmente na América Latina. Algumas até já haviam sido presas anteriormente por suspeita de conspiração contra o regime ditatorial.
No dia 25 de novembro de 1960, o carro em que as irmãs estavam foi parado pela polícia, que as enforcou, as espancou e, logo em seguida, jogou o veículo de um alto morro para que a morte parecesse acidental.
Dessa forma, além da luta contra a violência de gênero, o dia 25 de novembro também representa a garra feminina em uma sociedade arcaica.

As irmãs Mirabal atuaram contra a ditadura dominicana (Foto: Casa Museo Hermanas Mirabal)
Na pandemia, em que o isolamento social propiciou um aumento nas denúncias dos casos de violência doméstica, a Campanha Sinal Vermelho ganhou voz através dos veículos de comunicação e redes sociais.
Ela foi elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça e consistia em, basicamente, uma mulher ir até uma farmácia, agência do Banco do Brasil, prefeitura ou qualquer outro órgão público e mostrar um sinal vermelho desenhado em sua mão.
Os locais teriam instruções prévias de como prosseguir, acionando autoridades policiais discretamente para ajudarem as mulheres.
Passando para os movimentos que surgiram em redes sociais, é impossível não citar o Movimento Me Too, que surgiu nos Estados Unidos após várias denúncias contra o produtor Harvey Weinstein virem à tona em 2017. Dessa forma, a atriz Alyssa Milano incentivou que mulheres contassem testemunhos sobre seus abusadores através da #MeToo (Eu Também).
Uma enxurrada de depoimentos que bombaram na internet apenas demonstraram uma imensidão de mulheres que, em sua maioria, sofriam caladas e tiveram oportunidade de se expressar, entrando em contato com outras pessoas que passaram pelo mesmo e percebendo que não estavam sozinhas.
Através da conscientização, é possível fazer com que mulheres sintam menos medo e mais confortáveis para buscarem ajuda, além de entenderem seus direitos perante a sociedade. Elas são cruciais para a construção de uma sociedade mais segura, mesmo que ainda haja um longo caminho pela frente.
Homicídio culposo, doloso e os impactos do feminicídio
Os homicídios culposo e doloso são destaque no registro realizado pela SSP e, a partir de sua visualização, também é possível conferir os impactos da integralização das estatísticas acerca do feminicídio. Apesar da lei que qualifica o assassinato de mulheres em contextos de discriminação de gênero ser de 2015, ela somente foi integralizada na base de dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em 2018.
Consideravelmente estável ao longo da década analisada pela reportagem (2013-2023), o homicídio culposo costuma variar entre 0 a 8 casos por mês, atingindo uma sequência recente de picos em outubro e novembro de 2022, que também se repete em janeiro, fevereiro e março de 2023. Quando atinge tais ápices, o crime pode passar de 12 a 16 denúncias recebidas por mês.

A infração da lei é caracterizada pelo artigo 121 do Código Penal, em que, embora sem intenção específica, um indivíduo mata o outro. Para a legislação brasileira, a pena pode ser aumentada em ⅓ caso seja provado negligência de regras técnicas de profissão, arte ou ofício, ou ainda, se o agente do delito deixa de prestar socorro imediato à vítima, não tenta diminuir as consequências do ato ou foge da cena, evitando a prisão em flagrante.
No caso específico da violência contra as mulheres, o homicídio culposo se diferencia do homicídio doloso e do feminicídio pelo fato de não ser considerado crime hediondo regido pela lei 8.072 de 1990. Para a justiça do Brasil, as duas últimas violações causam repulsa pela sua natureza e, por isso, não são passíveis de fiança, graça, indulto ou anistia, perdão e liberdade provisória.
De janeiro de 2013 a dezembro de 2017, um mês antes do feminicídio passar a ser levado em conta pelo sistema de apuração da SSP, o homicídio doloso apresentava números relativamente baixos que variavam de 2 a 12 casos por mês, alcançando o ápice em setembro de 2013 com 30 denúncias. No entanto, com a inserção do assassinato em condição de desigualdade de gênero, os dados passaram para uma média de 13 a 33 registros por mês.

O homicídio doloso também é classificado pelo artigo 121 do CP, em que assume a vontade de matar pelo agente do crime. Da mesma forma, o elemento do dolo pode adquirir três características diversas: direto, quando a intenção de matar é sucedida pelo evento previsto, indireto, em que a ação pode decorrer em outras mortes não planejadas, e eventual, quando o responsável age mesmo com a consciência do risco de morte.
No quesito da violência doméstica, somente o feminicídio pode ser aplicado, visto que tanto o homicídio culposo quanto o doloso podem ser passíveis de aumento da pena apenas nas situações que envolvem o feminicídio. Esse conceito trata do assassinato de pessoas do sexo feminino que ocorre sem qualquer tipo de vínculo com a discriminação de gênero.
Implementado na contabilização da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo em janeiro de 2018, o feminicídio apresenta, desde então, um aumento gradativo, passando de 5 a 25 casos por mês. Tal qualificação do delito de homicídio foi originalmente integrada ao Código Penal pela 13.1044 em 9 de março de 2015 e, do mesmo modo, observa-se a vulnerabilização de mulheres negras e periféricas, consideradas as principais vítimas.
De acordo com o relatório anual realizado pela Anistia Internacional em 2022 a respeito dos direitos humanos em mais de 150 países, o Brasil é um expoente da violência de gênero, com 62% das vítimas de feminicídio pertencendo à população negra. Tal resultado alarmante condiz com o comportamento do crime na base de dados da SSP que, no primeiro semestre de 2023, apresentou um aumento de 89,47% em relação aos seis meses iniciais de 2018.

Por que as denúncias de estupro aumentam a cada ano?
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o ano de 2022 foi marcado pelo maior número de estupros registrados na história. A maioria das vítimas era menor de idade. Segmentando um pouco mais, o Estado de São Paulo também não apresenta melhorias em relação a quantidade de casos, saltando de 745 casos denunciados para 11.887 no ano passado.
O aumento de números assusta, considerando que apenas uma parcela dos casos são denunciados e é altamente possível que a baixa de casos no passado não representa maior respeito às mulheres, muito pelo contrário, registrava a possível culpa e vergonha da mulher, já que em 2016, um a cada três brasileiros culpava a vítima pela violência, de acordo com o Datafolha.
Possíveis vulnerabilidades da vítima ou vítimas menores de idade também são fortes fatores que impedem a notificação do caso.
De acordo com Carla Jara da Associação Fala Mulher, o estigma associado ao crime de estupro é o principal motivo para uma subnotificação desses casos. Segundo pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), menos de 9% dos estupros no Brasil são notificados.
Utilizando essa estimativa e baseando-se nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é possível considerar que em alguns anos no país, o número de violências sexuais pode ter chegado próximo aos 1 milhão.
“O aumento de denúncias pode ser atribuído, em parte, ao crescente empoderamento das vítimas, indicando uma positiva mudança cultural que encoraja mais pessoas a reportarem os casos. No entanto, o estigma pode continuar a impedir algumas vítimas de se manifestar, mesmo em um ambiente que promove a conscientização e a coragem para denunciar”, afirma.
Tantos casos e inúmeras justificativas infundadas dadas pelo agressor, “eu não tive culpa, ela estava com uma roupa muito curta”. 26% dos homens brasileiros em 2014 concordavam com essa afirmação, segundo o IPEA.
Com um dado alarmante, uma das campanhas que marcou o início da visibilidade de movimentos feministas nas redes sociais se desenrolou. A “#EuNãoMereçoSerEstuprada” protestava contra ideais arcaicos de que homens não conseguem controlar seus instintos, com mulheres postando fotos nuas, escrevendo a mensagem em seus corpos.
A criadora do movimento, Nana Queiroz, afirmou na época que recebeu ofensas e ameaças por defender o direito da mulher.

Nana Queiroz é jornalista e iniciou o movimento contra a cultura do estupro em 2014 (Foto: João Fellet)
Os dados crescentes de estupros notificados, que segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, quase dobrou entre 2013 e 2022, denunciam não apenas os crimes, mas a cultura do estupro de uma sociedade patriarcal. Mesmo que em 2023 os números coletados cheguem até agosto, as denúncias quase chegam a 8 mil, quase atingindo o balanço de 2022, com 11.887 notificações.
A cultura do estupro é tão intensa e o ideal de que as mulheres são culpadas pela roupa que vestem é tão instaurado que se expande além de São Paulo ou do Brasil. Na Bélgica, por exemplo, o grupo de apoio a vítimas de estupro CAW East Brabant realizou uma exposição em 2018 com peças que as vítimas do abuso usavam no momento do crime.
Camisas e calças largas, sem nenhum decote. Pijamas e vestidos discretos. Até mesmo roupas infantis compunham a exposição.
Apesar de inúmeras campanhas de conscientização, Carla Jara também ressalta o medo como um impedimento para mulheres denunciarem seus agressores. “É essencial continuarmos aprimorando essas iniciativas e criar ambientes mais seguros para encorajar as mulheres a denunciarem, promovendo uma cultura de responsabilidade e apoio”, destaca.
Também é importante utilizar da interseccionalidade para analisar esses dados. Apesar dos dados da SSP-SP não possuírem um recorte racial e social, é preciso compreender que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência sexual.
De acordo com um estudo realizado pela Vital Strategies através de dados de 2015 e 2022 do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, 60% dos casos de violência sexual acontecem com mulheres pretas.
Isso ocorre por um histórico de sexualização e objetificação de corpos negros que vem desde o período de escravização, em que mulheres eram violadas por homens brancos. Isso faz com que, até os dias atuais, mulheres negras não sejam vistas como dignas de afeto, mas apenas objetos.
Mesmo que mulheres lutem diariamente para terem seus direitos respeitados, também é essencial que os homens, que representam a maior parte dos agressores, se conscientizem e combatam a cultura do estupro.
“Imagina se fosse sua irmã” e frases como essas precisam parar de existir. É necessário garantir dignidade para todas as mulheres, independentemente de quem são ou quais são suas histórias.
.png)
A constante lesão corporal e o aumento de maus-tratos e dano
Ao longo de uma década, a base de dados de violência contra a mulher da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo revela que a lesão corporal dolosa se manteve constante, variando de 3 a 5 mil casos por mês no estado. O crime intencional é caracterizado pelo artigo 129 do Código Penal como ofensa à integridade corporal ou à saúde, sendo passível de detenção de três meses a um ano, podendo sofrer aumento devido a gravidade.
Detentora de uma das estatísticas mais altas entre as listadas pela SSP, tal transgressão da lei pode ser praticada por meio de ação ou omissão e é subdividida em lesões leves, graves, gravíssimas e seguidas de morte. Assim, no momento da execução da lesão corporal dolosa, existem, no mínimo, dois sujeitos: o ativo e o passivo, esse último que, necessariamente, precisa estar vivo, visto que a legislação é outra para os casos que envolvem cadáveres.
Segundo a lei brasileira, sujeito ativo se refere aquele que pratica o crime, sendo o sujeito passivo a vítima desse.
Para a justiça brasileira, o fato da pessoa lesionada pertencer ao sexo feminino é algo agravante, capaz de adicionar tempo de reclusão na punição do agressor. No entanto, diante da não redução de denúncias, o Projeto de Lei 538/23 vai além e propõe o aumento da pena quando o delito ocorre na presença física ou virtual de ascendente ou de descendente da vítima.
Para o direito, a presença virtual de uma pessoa por plataformas de comunicação em tempo real é equivalente a presença física, portanto, também capaz de responder legalmente por infrações cometidas.
O PL é uma iniciativa da deputada Delegada Ione, filiada ao partido Avante e eleita para representar o estado de Minas Gerais no legislativo. Se aprovado pelo Plenário da Câmara, onde tramita em aguardo de votação, o texto irá substituir a determinação original que trata do aumento de pena em situações em que criança ou adolescente estejam presentes na cena do crime.
Historicamente na contramão dos dados acerca da lesão corporal dolosa, as denúncias de maus-tratos contra mulheres registradas pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo são inconsistentes. Embora variem entre 30 a 60 casos por mês, a mínima contabilizada é de sete denúncias em agosto de 2013 – ano de início da análise desta reportagem – enquanto a máxima foi atingida em fevereiro de 2022, com 187 registros.
.png)
Definido pelo artigo 136 do Código Penal, o crime se trata da exposição de uma vítima a situações de perigo de vida ou saúde pela autoridade, guarda ou vigilância de um agente. Nesse caso, o sujeito ativo é, usualmente, responsável pela educação, tratamento ou custódia, ferindo a legislação ao privar cuidados indispensáveis, impor condições de trabalho inapropriadas e abusar de meios de correção.
Os maus-tratos são descritos de forma semelhante pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) e, naturalmente, atravessam a violência transgeracional de gênero. É o que aponta o artigo Maus-tratos na infância de mulheres vítimas de violência (2009), em que os resultados demonstraram que 39,7% das mulheres vítimas na idade adulta apresentavam histórico de algum tipo de agressão na infância ou adolescência.
A pesquisa de campo feita por Maria Arleide da Silva, Gilliatt Hanois Falbo Neto e José Eulálio Cabral Filho esbarra em uma das questões mais estudadas pela área da psicologia, a transmissão de comportamentos violentos através das gerações. Esse quadro também significa que existe a manutenção das vítimas nesse estado de sofrimento, sendo o crime de maus-tratos, frequentemente praticado nos primeiros anos de vida, exemplo de destaque.
Igualmente em aumento nem um pouco gradativo, o dano apresentava uma série de 50 a 100 casos por mês contabilizados na base de dados da SSP até o mês de julho de 2022, data em que os números saltaram para 600 a 999 casos por mês em diante. Os motivos são incertos, podendo se tratar, até mesmo, de alguma mudança interna nos critérios para o cadastramento das informações.
.png)
O ato criminoso tem suas qualificações delimitadas pelo artigo 163 do Código Penal, em que a destruição, deterioração e inutilização de objeto alheio pode causar detenção de um a seis meses ou multa. Por ser uma transgressão da lei que é, necessariamente, absolvida diante de algum agravante, é considerada uma pena alternativa, afinal, elementos como o incêndio eliminam a possibilidade do infrator também responder legalmente por dano.
Para a legislação estabelecida pelo Brasil, não é possível que o proprietário do objeto cometa crime de dano, uma vez que o sujeito ativo age, obrigatoriamente, contra algo alheio. No caso do dono danificar o que esteja em posse momentânea de terceiro, esse responde pelas determinações do artigo 346 do CP que diz respeito ao exercício arbitrário das próprias razões.
Em relação a configuração do dano dentro dos tipos de agressões contra a mulher, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) identifica a infração como uma violência patrimonial. Dessa forma, podendo ser entendida como uma conduta inserida em um contexto doméstico e familiar, todavia, que não corresponde à totalidade dos casos, ainda que seja a maioria expressa.
A escalada repentina dos crimes de honra, constrangimento ilegal, ameaça e outros cometidos contra a dignidade sexual
Também em uma crescente, os crimes de honra sempre demonstraram números altos na base de dados sobre violência contra as mulheres da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Entre janeiro de 2013 e junho de 2022, as estatísticas variaram de 900 a 1100 casos por mês, mas, a partir de julho do ano passado, cresceram para 4 a 6 mil casos por mês. Tal mudança na metade do ano coincide com o salto em quantidade sofrido pelo dano no mesmo período.
.png)
Calúnia, injúria e difamação são os delitos classificados como crimes de honra pelos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Segundo o texto, caluniar é o ato de sugerir que alguém tenha cometido um ato criminoso, enquanto injuriar pode se tratar de qualquer ofensa à dignidade de uma pessoa e, por fim, difamar sendo a tentativa de ofender a reputação da vítima.
Assim como grande parte dos delitos listados pela base de dados, os crimes de honra possuem peculiaridades no momento em que são aplicados pela justiça. Na questão da calúnia, a ação de espalhar o conteúdo calunioso com a consciência de que ele é falso, a famosa ‘fofoca’, também pode ser passível de punição. Quanto à injúria, ela pode ser denominada como discriminatória se acompanhada de elementos étnicos, religiosos ou de gênero.
Já a difamação, diz respeito somente à honra objetiva, o que exclui as chances de abordar qualidades subjetivas como a autoestima, baseada em sentimentos que cada indivíduo possui em relação aos seus próprios atributos. Por isso, há uma defesa no campo jurídico de que empresas e pessoas jurídicas possam ser vítimas dessa transgressão em determinados contextos.
Tomando como especificidade o cenário de agressão contra as mulheres, o Projeto de Lei 3048/2021 foi aprovado pelo Senado Federal em 2022. O texto da relatora Leila Barros, filiada ao Partido Democrático Trabalhista (PDT) e eleita para representar o Distrito Federal no legislativo, traz o aumento da pena para os crimes cometidos contra a honra feminina, recurso anteriormente à disposição de autoridades do governo e de funcionários públicos.
Contrariando as estatísticas dos crimes de honra, o constrangimento ilegal sempre mostrou tendências irregulares no registro contabilizado pela SSP, a exemplo de sua mínima e máxima: um caso em junho de 2019 e 729 denúncias em fevereiro de 2022, respectivamente. Tal ápice corresponde ao mesmo período de alta repentina de maus-tratos contabilizados e, novamente, os motivos são incertos.
Entretanto, fato é que a escalada de ambas as infrações coincide com o primeiro carnaval realizado no momento pós-pandêmico e não é novidade que os dias de festividade acarretam em uma maior notificação dado as condições do convívio em uma sociedade ainda machista e com respaldo insuficiente por parte dos profissionais em cargos de poder. Em situações normais, os níveis de constrangimento ilegal podem alcançar de 10 a 120 casos por mês.

Conceitualmente, o constrangimento ilegal é ato de constranger por meio de violência, grave ameaça ou após reduzir a capacidade de resistência, oportunizando o individuo a realizar ações condenáveis por lei. Tais aspectos estão previstos pelo artigo 146 do CP, que ressalta o fator de coerção absoluta necessário para a aplicação da pena, ou seja, o sujeito ativo não pode ter motivos para agir, pois isso se trata de exercício arbitrário das próprias razões.
No campo da violência contra as mulheres, o crime de constrangimento ilegal não apresenta agravantes. A adição de pena pode acontecer quando o delito é cometido com a finalidade de extrair uma vantagem econômica da vítima ou em condições de ser realizado por funcionários públicos em exercício de suas funções, assim, caracterizando abuso de autoridade.
Constantemente alta, o comportamento dos registros de ameaça na base de dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo acerca da violência contra as mulheres é semelhante ao de dano e crimes de honra, em que motivos incertos denotam um aumento a partir de julho de 2022, com as estatísticas passando a crescer de 6 a 9 mil casos por mês. Anteriormente, a variação era de 4 a 6 mil denúncias por mês.
.png)
A ameaça é uma das infrações da lei mais abrangentes na justiça do Brasil. De acordo com o artigo 147 do Código Penal, o ato de ameaçar pode ser cometido de diversos meios simbólicos, entre eles, palavras, escritos, ou gestos. Não suficiente, o delito ainda assume forma explícita e clara ou implícita e velada, são exemplos, respectivamente: “vou te bater na saída da escola” e “não tenho medo da lei”.
No âmbito da violência doméstica, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) aborda a ameaça de modo não totalmente eficaz, sendo a falta de testemunhas no seio da convivência familiar parte considerável das razões por trás dessa pouca adesão. O trauma decorrente da situação de risco colabora para o esquecimento e confusão da vítima que, por sua vez, é impossibilitada de recontar os fatos com a ‘confiança’ que tal crime contra a liberdade individual demanda.
Elementos singulares em meio a contabilização da SSP analisada pela reportagem, os outros crimes cometidos contra a dignidade sexual não são especificados pelo órgão de administração das polícias do estado de São Paulo. O Título VI do CP, todavia, lista os diferentes agravantes da prostituição, como o tráfico de pessoas e a exploração de vítimas, que podem ser menores de idade.
Durante janeiro de 2013 a setembro de 2018, os números dessas violações se mantiveram consideravelmente baixos, com cerca de 0 a 13 casos por mês. No entanto, a partir de outubro de 2018 – quase um ano após o início da contabilização do feminicídio – a agosto de 2023, os crimes apresentaram um aumento gradual que atinge, em seu pico, 279 casos por mês.
Mesmo que não apresentem delimitações específicas acerca do potencial cenário de violência doméstica, os crimes cometidos contra a dignidade sexual possuem as mulheres como vasta maioria das vítimas. Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2016 mostrou que, a cada 11 minutos, 1 mulher é vítima de agressão no Brasil. Logo, historicamente, é nítida a situação deplorável que o país vive em relação ao tema.
No fim, a marca é eterna: as consequências da violência de gênero
Uma agressão que pode durar um instante, mas fica marcada como uma cicatriz eterna na vítima. De acordo com uma pesquisa sobre Violência contra mulher e suas consequências, os ataques podem causar diversos traumas psicossociais para a mulher.
Os efeitos podem variar desde distúrbios do sono a baixa autoestima, além de má alimentação, hematomas, dores no corpo, síndrome do pânico, tristeza e solidão.
Através dos dados analisados fornecidos pela SSP-SP sobre o número de denúncias de crimes de gênero, é possível compreender que as notificações nunca realmente foram a quantidade real de crimes ocorridos.
Mesmo que no passado os dados fossem menores, isso não significava necessariamente uma baixa de casos, mas uma sociedade muito mais misógina, em que mulheres tinham medo de exporem suas vozes e sofrerem retaliação.
Isso também não faz com que os números atuais sejam a quantidade absoluta de crimes que ocorreram, tendo em vista que muitos ainda continuam subnotificados por medo, sensação de solidão e estigmas relacionados ao crime, já que a sociedade ainda se configura como patriarcal.
É importante ficar atenta a pequenos atos e sinais de alertas, as famosas red flags, que podem culminar em agressões físicas e psicológicas. Saber identificar seus direitos e buscar redes de apoio seguras em familiares, amigos ou instituições sem fins lucrativos, também é algo essencial para mulheres que sofrem de abusos constantes. Além de compreender que nada daquilo é sua própria culpa.
"No dia que for possível à mulher amar em sua força e não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para se encontrar, não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia então o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal."
- Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo